Nos últimos anos, presenciamos a escalada de diversas crises: política, climática, sanitária, social e, também, econômica que se espalham pelo mundo. Algumas crises parecem maiores do que realmente são. Outras mais intensas e relevantes, não recebem a atenção devida. Talvez seja o que se convencionou chamar de infodemia, que nos proporciona a sensação sucessivas crises e incerteza sobre o real tamanho dos problemas que enfrentamos hoje.
Agora, a crise da vez é o que se convencionou chamar de “inverno das startups” ou “ajuste de valuation” para ser mais técnico. Por muito tempo, empresas de tecnologia nos mostraram que era possível imaginar novas relações com um consumidor cada vez mais digitalizado, novos modelos de negócios para uma sociedade cada vez mais sedenta de transformação. Então, o tempo passou, os investidores apostaram alto e, agora, parece que a conta está chegando e deixando o clima meio agridoce para consumidores e trabalhadores dessas empresas.
Crise no playground.
Os ares de velha economia nas empresas de tecnologia começaram a atingir uma camada, que antes parecia ser impenetrável às crises, pelas propostas inovadoras de modelos de negócios, produtos, serviços e muito pela relação com o consumidor e também seus colaboradores. Um exemplo vem da Netflix e Disney+ que, após um período de forte crescimento, anunciaram que vão tomar uma medida não muito simpática com quem compartilhar senha: cobrar o valor devido. O que me parece muito justo. Isso sem contar a possibilidade de ter modelo de assinatura com publicidade para ampliar a base de usuários. Definitivamente, acabou o carnaval do streaming.
A indústria dos games, por muito tempo, era um segmento que muitos jovens sonhavam em trabalhar sem cobrar benefícios mundanos do trabalhador comum. Porém, hoje, estão formando sindicatos e reclamando direitos trabalhistas. Parece que a cerveja grátis e o escritório em formato de playground deixaram de ser suficientes para atrair talentos. Agora o pessoal quer o VT, VR e plano de saúde em dia. Acho que até demorou para esse dia chegar.
Muitos acusam as empresas de tecnologia de se comportarem como velhos capitalistas do passado. Talvez o problema esteja entre os investidores e acionistas que atuam como antigos barões. Acionistas da Amazon e Meta rejeitaram ações ambientais e melhorias de condições de trabalho. Entre as big techs, o caso mais irônico é dos colaboradores do Google Maps que estão dizendo que não vão usar o próprio app para voltar ao escritório, pois não podem cobrir a alta da gasolina.
Acabou a lua-de-mel com os investidores.
Lá na outra ponta, a das startups early stage, o clima também não é bom. A carta da aceleradora Y Combinator pede para que seus empreendedores se preparem para o pior. Segue um trecho da carta, traduzida pelo Startups.com.br: “Ninguém pode prever o quão ruim a economia ficará, mas as coisas não parecem boas.O movimento seguro é se planejar para o pior. Se a situação atual for tão ruim quanto as duas últimas crises econômicas, a melhor maneira de se preparar é cortar custos e estender o runway nos próximos 30 dias.”.
A captação de novos investimento é o foco do problema aqui. O ajuste para se manter vivo é a prioridade, como segue a carta: “Não se esqueça que muitos de seus concorrentes não planejam bem, mantêm alta queima [de capital] e só descobrem que estão ferrados quando tentam aumentar a próxima rodada. Muitas vezes, você pode ganhar uma participação de mercado significativa em uma crise econômica apenas permanecendo vivo”
O momento é de olhar para a última linha e manter o barco flutuando sem ajuda. Isso tem reflexo na relação com o consumidor que estava acostumado a ter serviços subsidiados pelo investimento sem fim. Um exemplo é o mercado dos apps de transporte. Uber e Lyft subiram seus preços em 92% entre 2018 e 2021. O subsídio serviu para acabar com o serviço de táxis e, agora, os preços vão se ajustar ao que este serviço realmente custa para os motoristas.
Não corra para as montanhas (ainda).
As explicações sobre o momento de correção dos valuations variam bastante conforme quem analisa. Quando olhamos o cenário macroeconômico, vemos que o momento de incertezas geopolíticas e climáticas, provocou um efeito borboleta que acabou impactando o investimento em inovação.
A verdade é que o que acelera a indústria da inovação é o investimento contínuo. Um exemplo são as empresas de software as a service (SaaS) que, mesmo em estágios mais avançados, têm fundamentos complicados (tabela abaixo) de defender para um investidor mais cauteloso. O setor de Pesquisa e Desenvolvimento (R&D na tabela) destas empresas consome muitos recursos. Muito por conta da falta de desenvolvedores no mundo todo.
O lucro é importante, mas não é tudo neste estágio de maturidade das empresas de tecnologia. O investimento contínuo tem um fator importantíssimo a ser analisado que é o crescimento. Boa parte dos investimentos são direcionados para aquisição de novos clientes e para desenvolvimento de novas funcionalidades e produtos. Quando analisamos a relação ideal entre taxa de crescimento vs lucro, temos um panorama mais claro se o investimento está trazendo resultados.
Por fim, o mercado está mais crítico neste momento. O resumo de tudo isso é que as bonitas apresentações em PowerPoint precisam se confirmar nas planilhas de Excel. A festa não acabou, mas agora as luzes estão acesas e quem não sabe dançar conforme a música dos resultados terá mais dificuldade para disfarçar.